Na Sé, o cheiro era de pólvora. Mas eu prefiro as rosas
Show do Racionais acaba em tiros. Em vez da festa, choque toma conta da praça
por Flávia Guerra
SÃO PAULO - É com os olhos rasos d’água, e de gás lacrimogêneo, que escrevo este lamento. 6h02 da manhã. São Paulo amanhece após mais uma Virada Cultural. No marco zero da maior metrópole do País, a vigília inspirada nas Noites Brancas européias, virou noite turva. “06 de maio de 2007. Madrugada de sábado para domingo. Outono no Brasil. Esta data vai ficar marcada”, profetizou o tão aguardado Mano Brown ao pisar o palco da Praça da Sé, que já havia recebido Alceu Valença e Nação Zumbi.
Os mano bem que tentaram. Guerreiro de fé nunca gela, não agrada o injusto e não amarela. Mas na madrugada, gelou. Injusta noite adentro. E o peso do maracatu atômico do Nação deu lugar ao clima pesado que tomava conta da multidão que se espremia na praça para ver os manos racionais. Mas a noite era de irracionalidade. 1.000 Trutas. 1.000 Tretas. Depois de amargar uma espera de mais de uma hora e meia para ver o Racionais, a multidão já estava amargurada. O caldo foi engrossando. O circo estava armado quando, finalmente, às 4h45, a nação periferia pôde ver um Brown sóbrio, de negro da cabeça aos pés. Elegante em sua incessante luta pela periferia paulistana, o rapper naquela noite perdeu a batalha para as balas, o gás e a tropa de choque.
A treta começou muito antes, do lado esquerdo do palco. 4h15 da matina. Sob as torres da igreja, os manos de São Matheus se estranharam com os Manos de Pirituba. Briga, tumulto, choro. Josafá colou na grade às oito da noite. As costelas dele também. 15 anos, mirrado, olhos vivos, costelas moídas na multidão. Josafá veio sozinho de Perus. Tomou dois ônibus. Gastou uma hora para ver o Racionais. “Vim foi sozinho. Mas vale a pena. Nunca vi os caras ao vivo”, dizia um entediado garoto, que não entendia muito o coco dub afrociberdélico dos manos da Nação Zumbi.
Eles misturam com maracatu. “É bom sim. Mas maracatu? Sei que é isso não. Alfaia?” Alfaia, o tambor de maracatu que a Nação sabe tão bem casar com o peso do rock. A mãe nordestina de Josafá deve saber o que é. Josafá, minutos mais tarde se safaria da maior muvuca provavelmente já presenciada pela tão vivida Sé. “Posso pular aí no cercadinho, moça repórter? O aperto aqui tá pegando.” E o bicho pegou mesmo. Os bicho-soltos de Pirituba barbarizaram. "Chama a polícia!" "Polícia só piora nestas horas. A gente mesmo apazigua", disse a voz da experiência de um segurança do evento. De fato. Paz refeita. Alguns estilhaços.
De Júlio Silva, só restou a camiseta. A calça e a cueca viraram boi de piranha na multidão. Olhos inchados, vergões nas costas. “Eu não tenho nada a ver com a treta dos cara, mano. Como é que eu vou voltar pra casa?” “Apazigua e curte. Tu pensa depois”, aconselhava Wilter Paulo, da Bela Vista. “Também me deixaram pelado, mina. No bate-cabeça, nego veio bater a bombeta em mim. Eu fui reclamar, levei.”
Quem levou mesmo foi a galera do chiqueirinho vip. As cadeiras brancas caprichosamente colocadas à frente do palco para playboy e mano chegado verem o show viraram arma na mão dos revoltados. A galera invadiu geral a área vip. A segurança contratada, sem ajuda da polícia, apaziguou. Pouco depois, o show começou. A paciência venceu. O desodorante também. UH! É Racionais! 4h35. O show começa. “Hoje sou ladrão. Artigo 57. As cachorras me amam, os playboy se derretem.”
Brown cantava o Negro Drama da falta de acesso no Brasil. “Fernando de Noronha para a periferia. Por que só playboy que pode? No Brasil tem muita natureza”, pregava o messiânico Brown. Na periferia paulistana é que não mora o bucolismo. O sorriso não é fácil de brotar na cara dos manos. “Show do Racionais é sempre assim. Sempre tem alguma coisa. Mas sempre acaba tudo bem”, apostava uma fã esperançosa do Aricanduva.
Ledo engano. Naquela noite a treta era das grandes. “Que fita é essa, mano?” Era o certo pelo certo, como dez e dez é vinte. Era certa a treta. A multidão engrossou. O caldo entornou. “Por que eu só falo mal de polícia. Até ladrão me pergunta isso, mano. Por que será? Eu só falo as histórias. A opinião do povo conta muito na letra”, profetizou o rapper. Minutos depois a polícia mostrou a que veio. O lado esquerdo apaziguou. O direito entornou. Vandalismo e briga.
De quem é a culpa? De todos. Brown dizia “Imagina só o Brasil sendo melhor.” Pense! E na multidão, pense no caos. O show parou. “Ei, mano, vamo pará com a treta, meu. Fica na humildade e vamo pensar na vida do irmão. Fé em Deus que ele é justo.” A palavra de ordem desordenou. Uh! Irracionais. “Gambé filha da p...” era o grito de guerra da galera. No marco zero da cidade, todas as regiões se encontram. Todas as periferias se identificam. Todos os manos (sejam eles da quebrada ou não) desembestam. As minas desesperam. Gás, lágrimas. Bombas de efeito moral. Tiros reais. Desmoralizante.
Brown é brasileiro e não desiste nunca. O show continua. As bombas também. “Eu vou falar o que eu tô vendo. Tô vendo uns mano batendo cabeça e todo mundo em volta. Revolta tem hora. Policiais, abaixem as armas. Só tem família aqui hoje. Tem criança. Tem mulher.” Tinha de tudo. Faltou a fé. “Tá suave. Vamos continuar a festa.” A muvuca não suavizou. Nem a polícia. Os estampidos apavoraram. “Rebeldia desnecessária, mano. Vamos apaziguar. Abaixa a arma, polícia.” A multidão invade o palco. Brown é guerreiro de fé. Não amarela. Continua professando sua fé ao lado dos fãs.
“Parabéns, vocês conseguiram. Acabou. Vão para suas casas. Vão com Deus.” 5h06. Brown desistiu. A festa acaba. O gás toma conta da praça. A massa se espalha pelas vielas. Vidros quebrados, grades envergadas, garrafas estilhaçadas. Na Quintino Bocaiúva com a Regente Feijó, carros destruídos. Os mano e as mina fugiam do choque. Esgueiravam-se ora ensandecidos, ora cabisbaixos. Parecia cocaína. Mas era só tristeza.
Na (pá) Virada Cultural da Sé, quem tocou foi o terror. 6h05. Estampidos ainda eram ouvidos na ladeira. Vida loka. Cabulosa. O cheiro era de pólvora. Mas eu prefiro as rosas. E os milhões de fãs também.
Os mano bem que tentaram. Guerreiro de fé nunca gela, não agrada o injusto e não amarela. Mas na madrugada, gelou. Injusta noite adentro. E o peso do maracatu atômico do Nação deu lugar ao clima pesado que tomava conta da multidão que se espremia na praça para ver os manos racionais. Mas a noite era de irracionalidade. 1.000 Trutas. 1.000 Tretas. Depois de amargar uma espera de mais de uma hora e meia para ver o Racionais, a multidão já estava amargurada. O caldo foi engrossando. O circo estava armado quando, finalmente, às 4h45, a nação periferia pôde ver um Brown sóbrio, de negro da cabeça aos pés. Elegante em sua incessante luta pela periferia paulistana, o rapper naquela noite perdeu a batalha para as balas, o gás e a tropa de choque.
A treta começou muito antes, do lado esquerdo do palco. 4h15 da matina. Sob as torres da igreja, os manos de São Matheus se estranharam com os Manos de Pirituba. Briga, tumulto, choro. Josafá colou na grade às oito da noite. As costelas dele também. 15 anos, mirrado, olhos vivos, costelas moídas na multidão. Josafá veio sozinho de Perus. Tomou dois ônibus. Gastou uma hora para ver o Racionais. “Vim foi sozinho. Mas vale a pena. Nunca vi os caras ao vivo”, dizia um entediado garoto, que não entendia muito o coco dub afrociberdélico dos manos da Nação Zumbi.
Eles misturam com maracatu. “É bom sim. Mas maracatu? Sei que é isso não. Alfaia?” Alfaia, o tambor de maracatu que a Nação sabe tão bem casar com o peso do rock. A mãe nordestina de Josafá deve saber o que é. Josafá, minutos mais tarde se safaria da maior muvuca provavelmente já presenciada pela tão vivida Sé. “Posso pular aí no cercadinho, moça repórter? O aperto aqui tá pegando.” E o bicho pegou mesmo. Os bicho-soltos de Pirituba barbarizaram. "Chama a polícia!" "Polícia só piora nestas horas. A gente mesmo apazigua", disse a voz da experiência de um segurança do evento. De fato. Paz refeita. Alguns estilhaços.
De Júlio Silva, só restou a camiseta. A calça e a cueca viraram boi de piranha na multidão. Olhos inchados, vergões nas costas. “Eu não tenho nada a ver com a treta dos cara, mano. Como é que eu vou voltar pra casa?” “Apazigua e curte. Tu pensa depois”, aconselhava Wilter Paulo, da Bela Vista. “Também me deixaram pelado, mina. No bate-cabeça, nego veio bater a bombeta em mim. Eu fui reclamar, levei.”
Quem levou mesmo foi a galera do chiqueirinho vip. As cadeiras brancas caprichosamente colocadas à frente do palco para playboy e mano chegado verem o show viraram arma na mão dos revoltados. A galera invadiu geral a área vip. A segurança contratada, sem ajuda da polícia, apaziguou. Pouco depois, o show começou. A paciência venceu. O desodorante também. UH! É Racionais! 4h35. O show começa. “Hoje sou ladrão. Artigo 57. As cachorras me amam, os playboy se derretem.”
Brown cantava o Negro Drama da falta de acesso no Brasil. “Fernando de Noronha para a periferia. Por que só playboy que pode? No Brasil tem muita natureza”, pregava o messiânico Brown. Na periferia paulistana é que não mora o bucolismo. O sorriso não é fácil de brotar na cara dos manos. “Show do Racionais é sempre assim. Sempre tem alguma coisa. Mas sempre acaba tudo bem”, apostava uma fã esperançosa do Aricanduva.
Ledo engano. Naquela noite a treta era das grandes. “Que fita é essa, mano?” Era o certo pelo certo, como dez e dez é vinte. Era certa a treta. A multidão engrossou. O caldo entornou. “Por que eu só falo mal de polícia. Até ladrão me pergunta isso, mano. Por que será? Eu só falo as histórias. A opinião do povo conta muito na letra”, profetizou o rapper. Minutos depois a polícia mostrou a que veio. O lado esquerdo apaziguou. O direito entornou. Vandalismo e briga.
De quem é a culpa? De todos. Brown dizia “Imagina só o Brasil sendo melhor.” Pense! E na multidão, pense no caos. O show parou. “Ei, mano, vamo pará com a treta, meu. Fica na humildade e vamo pensar na vida do irmão. Fé em Deus que ele é justo.” A palavra de ordem desordenou. Uh! Irracionais. “Gambé filha da p...” era o grito de guerra da galera. No marco zero da cidade, todas as regiões se encontram. Todas as periferias se identificam. Todos os manos (sejam eles da quebrada ou não) desembestam. As minas desesperam. Gás, lágrimas. Bombas de efeito moral. Tiros reais. Desmoralizante.
Brown é brasileiro e não desiste nunca. O show continua. As bombas também. “Eu vou falar o que eu tô vendo. Tô vendo uns mano batendo cabeça e todo mundo em volta. Revolta tem hora. Policiais, abaixem as armas. Só tem família aqui hoje. Tem criança. Tem mulher.” Tinha de tudo. Faltou a fé. “Tá suave. Vamos continuar a festa.” A muvuca não suavizou. Nem a polícia. Os estampidos apavoraram. “Rebeldia desnecessária, mano. Vamos apaziguar. Abaixa a arma, polícia.” A multidão invade o palco. Brown é guerreiro de fé. Não amarela. Continua professando sua fé ao lado dos fãs.
“Parabéns, vocês conseguiram. Acabou. Vão para suas casas. Vão com Deus.” 5h06. Brown desistiu. A festa acaba. O gás toma conta da praça. A massa se espalha pelas vielas. Vidros quebrados, grades envergadas, garrafas estilhaçadas. Na Quintino Bocaiúva com a Regente Feijó, carros destruídos. Os mano e as mina fugiam do choque. Esgueiravam-se ora ensandecidos, ora cabisbaixos. Parecia cocaína. Mas era só tristeza.
Na (pá) Virada Cultural da Sé, quem tocou foi o terror. 6h05. Estampidos ainda eram ouvidos na ladeira. Vida loka. Cabulosa. O cheiro era de pólvora. Mas eu prefiro as rosas. E os milhões de fãs também.
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