Cala a boca, tá? Você não queria me ouvir falar? Então cala a porra dessa boca. Cala essa sua maldita boca e me ouve. Você tava me achando patética? Patético é você falando sem parar, querendo se mostrar articulado, capaz de fazer equivalências cinematográficas. Que que é? Tá tentando me impressionar com sua cultura de "Guia de Cinema"? Vai tentar impressionar o Rubens Ewald Filho e vê se me deixa em paz. Eu não tava me fingindo de muda, idiota. Eu tava camuflada. Eu me camuflei de muda, entendeu? É diferente. Você quer saber o que é patético? Então presta atenção: Meu pai num canto do quarto, sozinho, entrincheirado, assistindo tv e alheio do resto do mundo. Eu lembro dele pelado lá na frente da tv. Ele ficava assistindo a tv completamente pelado. Ele parecia com a Yoko Ono na capa do "Two Virgins". É, ele se parecia com a Yoko Ono, é esquisito falar isso, né? Falar que o seu pai se parecia com a Yoko Ono, mas é verdade. Tá sacando o tamanho do patético? Eu tinha um pai que se parecia com a Yoko Ono e ele ficava o dia inteiro pelado assistindo tv e bebendo vodka, sintonizado em algum canal na sua cabeça maluca. Um canal que nenhum satélite tinha a manha de alcançar. E às vezes ele soltava um grito, do tipo assustador. Um grito de aflição ou de pavor, se você for capaz de distinguir um do outro. Do tipo que você ouviu agora há pouco, sabe como? Aí ele se tocava e ficava constrangido por ter gritado sem um motivo aparente, um motivo perceptível. Podia ser um filme de terror no canal da sua cabeça, um Nosferatu do Murnau, já que você é chegado em equivalências cinematográficas. Ele ficava constrangido e se recolhia de novo pra aquele mundo estranho que só ele conhecia e do qual a gente devia manter uma distancia segura, do seu canal particular, um canal a la carte conectado aos cabos da sua cabeça. Eu lembro dele assustado, na maca do hospital. Uma criança assustada acorrentada ao corpo de um velho. Um velho com sua dor, uma dor que alguém queria arrancar dele. Uma dor que ele passou pra mim. Um susto que durou tempo demais. E eu fiquei lá arrepiada, com os sentidos alterados por alguma espécie de adrenalina aflitiva. Eu pensava : "Essas coisas terríveis só acontecem em ER ou nas casas dos outros". Eu devia prever. Você não pode ter um pai que parece com a Yoko Ono e achar que tá tudo normal. Meu pai queria fugir daquela maca, algum sacana num momento de distração foi lá e mudou o canal da sua cabeça, ele queria voltar pra frente da sua tv, pra sua vodka e pro seu jornal. E meu pai gritava com a voz pastosa : "Me tirem dessa merda". Mas a gente se fez de surdo, a gente fazia de conta que não tava entendendo. Ou sei lá, vai ver a gente nem tava mesmo. A gente tava ocupado demais sentindo medo. A enfermeira com carinha de Rosanna Arquette...tá vendo só como eu sei realmente fazer equivalências cinematográficas? Acho que eu também sou capaz de impressionar o Rubens Ewald Filho...A enfermeira com carinha de Rosanna Arquette chegou pra mim e disse : "Eles costumam ficar agitados nessa hora". Ah, vai se fuder, Rosanna Arquette. Vai chupar algum plantonista de merda na cozinha do hospital. Não me vem com essa complacência, com essa falsa bondade escrota. Eu sei do que tô falando. O cheiro do hospital, o cheiro insuportável do hospital, os tubos, o médico que não aparecia, eles sempre tão em alguma emergência, você já reparou que eles sempre tão em alguma emergência? A minha mãe que ficava ligando no meu celular, as fraldas, o bip dos aparelhos. Eu corri pro corredor. Concentrei toda a atenção na minha mão, nas linhas da minha mão. Tem um mistério ali. As ciganas tão certas em tentar decifrar. Tem um mistério ali. Nas linhas da mão. Eu fiquei ali, olhando pra ela, tentando inutilmente decifrar o mistério, rezando pra que o mundo parasse, o canal da minha cabeça desligasse e me conectasse imediatamente com um canal estranho e pra que eu pudesse gritar de pavor como o meu pai assistindo algo tão assustador como Nosferatu do Murnau.
ISIS, de Mário Bortolotto (do roteiro do filme "Meu mundo em perigo").
Nenhum comentário:
Postar um comentário