26 julho, 2011

Fermentação



P
erdi a linha de raciocínio
desconcentrei-me
o vinho tinto marcou seus lábios
me induzindo a uma hipnose

meu poder cognitivo se foi
acho que até mesmo Aristóteles
não entenderia a lógica desses versos
talvez a razão tenha ido fumar um cigarro lá fora

para piorar, as luzes dos automóveis
rompiam o vidro que nos separava da rua
encharcando sua pela branca
evidenciando suas bochechas rosadas de embriaguez

um gole
uma risada roxa
também ri
era o meu argumento



22 julho, 2011

Supercílio



Notei que vinha em minha direção
precisava anotar
a noite chegava
era novembro

ela tinha escoriações no rosto
claro que percebeu que a encarava
e fez questão de me ignorar
não se dobraria

lhe perguntei
onde ficava a rua tal
e também as horas
"acho que vai chover"
ela riu. não iria chover

ri também, pois não sabia mais o que dizer
ela tinha um sotaque
parecia ser de longe
distante


18 julho, 2011

Liquidez


Sou um arquivo para download
é só clicar
encamado por um revertério
meio aquilo proposto por Zigmunt Bauman

mais que um cidadão pós-moderno
preciso de ereção e beijo na boca
se o meu cigarro chegar até o filtro
não tem problema, acendo outro

nós dois temos um prazo de validade
semana passada, na sua última ligação
disse um discreto “até breve”
um contra-fluxo

na prateleira posso escolher
idade, cor dos olhos e altura
uma paixão passageira
uma fragilidade coletiva


17 julho, 2011

Antroposofia



Minha memória às vezes falha
simplesmente deixo de lembrar
a janela ficou aberta num dia de chuva
cenário para um sonho

substitui os comprimidos pelo retrato dela
homeopatia que nada
o sofrimento purifica
sentir sua falta me deixa parado no ar

o acaso
um deslocado enlouquecido
descolado e destoado
mais um pouco e desabo

não sei como começou
como foi mesmo?
ah sim
foi sorte eu acho



08 julho, 2011

A.V.C.


Dia turvo
mente torpe
trote torto
um tropeço

a linha reta me desafia
o sol de inverno me engana
o corrimão é solidário
a padaria não tem trocado para o pão

se você disser que sim
eu acredito
se você me abandonar
eu resisto

meus joelhos encontram o chão
desencontros na Plataforma 3
o que tenho no estômago sai
a solidão fica



05 julho, 2011

Difusora


Ela deve ser uma das últimas a fazer isso
sintonizar o rádio girando um botão
um olhar analógico

um sorriso orgânico

auto-falante empoeirado

um pouco de chiado
deve ser uma guitarra tocando Hey Joe
ou uma voz rouca sussurrando Summertime

ela depara-se com o botão mono/estéreo
não deve funcionar
na ponta da antena tem um pedaço de palha de aço
não deve funcionar

acende um incenso, me oferece vinho
no brinde penso em sexo
ela diz: pela paz mundial
dá no mesmo